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Editorial JetSite - Sons que não se calam




Por volta de uma, duas horas da manhã, várias vezes por semana, pousava em Congonhas o último voo regular operado naquele aeroporto por um tipo clássico: o Douglas DC-6. Mais do que isso, estes foram na verdade os últimos serviços regulares operados por quadrimotores a pistão desde o aeroporto paulistano. Eram uma quadra de aeronaves cargueiras da Vasp, matriculados PP-LFA, B, C e LFD. Lutava para ficar acordado, afugentando o sono apenas para poder ouvir aquele som dos quatro radiais Pratt & Whitney. No silêncio da madrugada, era possível ouví-los chegando, provavelmente ainda quando estavam no través do Jockey Clube. Menos de um minuto depois, eles sobrevoavam o apartamento no bairro de Moema, segundos antes do pouso na pista 16 de Congonhas (sim, sou do tempo que a pista 17 era a 16 de Congonhas e a 10 do Galeão era uma mera 09).

Outro dia, trabalhando em Alphaville, tive minha atenção sequestrada pelo ruído único de um par de reatores IAE V2500 da TAM que sobrevoava a região em aproximação para a 16 de CGH. Quando em "Flight Idle" ou marcha lenta, eles produzem um som que parece um lamento, quase uma queixa saída de um saxofone alto. Capturado por aquela música, deixei meu interlocutor falando sozinho e, magnetizado, acompanhei a passagem da aeronave. Quando despertei do transe, encontrei meu colega a me fitar com um sorrisinho nervoso, misto de ironia e perplexidade. Após dois segundos de constrangimento mútuo, ele aliviou: "você é louco mesmo". Pedi desculpas.

O fato é que sou louco mesmo pelo som dos motores aeronáuticos. Eles são grandes responsáveis pela personalidade das aeronaves. Não que exista um único avião que produza um som feio. Apenas há alguns que são mais mágicos, cativantes. O som dos aviões está da mesma maneira como o som da voz em uma mulher. Ela pode ser linda, mas e se a voz for feia?

E já que a comparação fatalmente vai para o terreno das paixões, enumero minha lista pessoal. Preciso começar a dizer que avião que se preza é barulhento. Essa coisa politicamente correta de poucos decibéis não é para mim. Nada supera a magia dos velhos jatos de primeira geração. Inesquecível a decolagem de um DC-8-54F da Lineas Aéreas del Caribe, presenciada desde a pista do aeroporto de Viracopos, em uma madrugada perdida de 1986. Outra que não sai da cuca foi a partida de um veterano VC-10 da Royal Air Force, que fez uma mágica visita a Guarulhos em 2004. Seus quatro Rolls-Royce Conways deixaram os céus tão enegrecidos de fumo quanto minha alma clara com o seu som poderoso, nostálgico.

Sim, essa era uma geração espetacular. Os Boeing 707 da Varig partindo a noite do Galeão em seu peso máximo, necessário para cruzar o Atlântico, eram verdadeiras caravelas a deixar para trás um continente em busca de outro além-mar. Era entorpecedor ouvir o ganido daqueles quatro Pratt & Whitney JT3-D a plena potência, sobretudo quando os comandantes aplicavam o freio enquanto aguardavam subir a rotação, para só então permitir que os jatos iniciassem a corrida. Eu era feliz e sabia.

Outras passagens felizes foram deixadas pelos Caravelle da Cruzeiro. Aquilo sim que era "barulho de avião". Aqueles dois "charutinhos" na cauda, a parelha de Rolls-Royce Avon, estremeciam as obturações na boca quando a potência era aplicada. Barulho de arriar a meia. Ninguém escutava mais nada quando o elegante jato passava correndo pela pista, o som de mil trovoadas correndo pelo asfalto.

Outro da turma do barulho era o BAC 1-11 da Sadia/Transbrasil. Depois do almoço, havia uma partida diária para Salvador (TR500, se não me falha a memória). Nas tardes de verão, temperatura passando dos 30 e poucos graus, o jeito era injetar água nos dois Rolls-Royce Spey que equipavam os "Jatões". Nessas decolagens, a quantidade de ruídos só perdia para a copiosa produção de fumaça que a água adicionava aos gases nos bocais de escape. Hoje, um esporro desses seria capaz de fechar Congonhas, graças aos seus vizinhos rabugentos. E, sorry, vizinhança, mas vocês chegaram DEPOIS: o "Campo da Vasp" está lá desde 1936; portanto, os incomodados que se retirem.

Sim, porque quem se muda para perto de um aeroporto não tem direito a reclamar. Sobretudo hoje, quando a nova geração de motores aeronáuticos mais parece um sussuro, quando comparados aos veteranos aqui citados. E por falar em veteranos, que tal lembrar os wide-bodies de primeira geração? Não dá para esquecer os primeiros 747-100 com motores Pratt & Whitney JT 9-D. Um som alto, agudo, completamente novo. Ele tinha som de coisa moderna. O som do futuro. Depois, com a chegada dos 747-200 com motores GE CF6, mais potentes, o som mudou distintamente. Mais grave, já trazia uma redução sensível de decibéis. Nem por isso, deixava de ser sublime na partida e durante o táxi, produzindo um timbre mais grave, metálico, poderoso.

O troféu "Partida de Ouro", porém, poderia ser outorgado ao trio de Rolls-Royce RB211 que equipavam os L-1011 Tristar, um tipo meio raro de se ver no Brasil. Ao girarem os motores, o que se ouvia era o som era de uma fera enjaulada, rugindo por liberdade: cavo, grave, carismático. Acompanhava também uma bela cortina de fumaça, provocada pela combustão de resíduos de óleo depositado desde o voo anterior. As fumaçentas partidas dos Tristar da AeroPeru, TAP e da PanAm deixam saudade.

Falamos de motores a pistão e de jatos. Mas, e os turboélices? Opa, muita saudade nesta categoria também. Não dá para esquecer jamais o som agudo que os Rolls-Royce Dart produziam, já definido por um jornalista inglês como o choro das Banshees, as carpideiras da tradição gaélica. No Brasil, os Viscount da Vasp, com quatro Darts, enchiam o aeroporto com sua maravilhosa, agudíssima sinfonia. Que saudade de ver os "Vaicões" ligando o 4, o 2, o 3 e o 1 na sequência, inundando o terracinho de Congonhas. Eram estes mesmo motores que equipavam os Dart Herald da Sadia, os AVRO da Varig, os YS-11 de Cruzeiro e Vasp e, anos mais tarde, também dos F-27 da TAM e Rio-Sul. Lembro que o hiato, o período entre 1975 e 1980, quando a aviação comercial brasileira ficou sem o som dos Dart, foi um período sentido _ ainda que os C-91 da FAB mantivessem a tradição. Mas foi somente com a chegada do PT-LAF, primeiro F-27 da TAM incorporado em janeiro de 1980, que a fonte praticamente seca encheu-se novamente. A chegada do LAF foi recebida com júbilo por este que vos escreve, sobretudo porque representou a volta da música dos Dart.

E, deixando para o finalzinho o melhor: como esquecer o som dos quatro Allisson 501 D-13 que equipavam os inigualáveis Lockheed Electra da Varig? Parte significativa de meu amor pelo Electra e, cuíca, pela aviação, vem sem sombra de dúvida do maravilhoso som dos quatro turboélices do "Soberano" da Ponte Aérea. Aquilo sim que era ruído: ao fundo, o sibilar das turbinas; em primeiro plano, a potência das quatro gigantescas pás de hélices Aero Products. O Electra personificava o som perfeito da aviação, do aeroporto. Era o som das chegadas, a música das partidas. Era melodia do cafezinho em Congonhas nas madrugadas, o escore musical das idas e voltas ao Rio. Era a perfeita trilha sonora de se voar no último representante de tempos mais elegantes, cordiais, carismáticos. Tempos em que até mesmo o som tinha cor.

Gianfranco Beting




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